quinta-feira, abril 20, 2006

Diário de um Cucaracha


A nossa história começa em 1963, no Paraguai, numa rua de notívagos de nome nao menos boêmio: Simón Cucaracha. Ele, que foi um grande amante dos bons charutos e das belas prostitutas francesas, em seus dias mais inspirados jamais imaginaria que a tal rua levaria seu nome.

Talvez nem tivesse orgulho, pois todo boêmio faz promessas vãs de sair dessa vida, e até vislumbra planos para tal dia. Mas a vida boêmia é quase como um dom, e dela os boêmios não poderão livrar-se facilmente.

E na semi escuridão de uma dessas noites bêbadas, estava lá outro personagem dessa história: o pai de Geraldo. E foi numa madrugada dessas de arroubos, suor e uns dois bons poemas que todo capadócio sabe de cor, que Geraldo foi concebido.

A mãe dele, que poderia até receber um nome se não fosse tão rapidamente desaparecer de nosso relato, derramou um longo pranto ao descobrir que os planos daquele boêmio não eram exatamente o de construir uma vida estável ao lado dela no Brasil. Ele, na verdade, tinha outros planos, que foram satisfeitos alguns minutos depois daquela conversa de sonhos.

Alguns meses depois, no Espiríto Santo, já em 1964, estaria Teresinha segurando no colo aquele rebento de pai desconhecido e de mãe inominada. O menino, que quase teve Teresinha como mãe, foi enviado para a casa de uma irmã dela, que tinha mais posses e propriedades e, portanto, boas chances de cuidar sem maiores afobamentos de um pequeno abandonado.

Consuelo nunca escondeu de Geraldo a sua procedência incerta, nem que a sua cestinha foi posta primeiramente na casa da Tia Teresinha. O nosso Geraldo, apesar de nao ter maiores problemas com a sua história de vida, sempre olhava para a Tia Teresinha e a imaginava como mãe, o que lhe era insuportável diante dos tabefes e beliscões que seus primos sofriam publicamente.

Teresinha não era uma pessoa esperta, sagaz, mas também nao era desprovida de alguma inteligência mediana. No entanto, todos na família a tinham em conta como pessoa de muita sabedoria e cultura. Ela não lembrava bem de onde surgiu o título, mas gostava dele e se portava como tal, e a essa altura do relato até acredita realmente que é mais esperta que os outros.

Ela não recorda, mas nós temos como voltar um pouco na história e revelar o momento em que Teresinha passou a ser tida como culta. Certamente ela não é a única pessoa que é tida por algo que não é, pois o que não falta no mundo é uma espécie de complexo de aquiles generalizado.

Vamos lá. Os aparentados de Teresinha sempre concordaram que ela era a pior pessoa para presentear em amigo secreto de final de ano. Não é vaidosa, o que exclui a maior gama de presentes femininos; não é afeita a serviços domésticos, o que excluía a porcentagem que restava para dar presentes a uma mulher nos anos sessenta.

O que ano a ano se repetia era a insatisfação pública de Teresinha ao receber o seu presente. Até que em 1967, quando Geraldo ainda era um bebê e por isso não tem como recordar a época em que Tia Teresinha nao era tão culta quanto hoje se sabe, o Tio Antônio, esse sim esperto merecidamente, comprou um livro para Teresinha.

E ao iniciar os enfadonhos elogios que se faz antes da entrega de presentes natalinos, ele inovou. Para o espanto das cunhadas perfeccionistas, o presente nao estava embalado. Era um presente para um homem, pensaram todas. Antônio levantou-se e teceu algumas considerações em torno do seu amigo oculto: "...É a pessoa de maior cultura, indubitável sabedoria, desde sempre conhecida por todos os familiares como uma grande conselheira, profunda conhecedora de diversas ciências!"

Todos, com exceção de Teresinha, que cochilava na cadeira de balanço, estavam curiosos ante a descrição. Ora, se não era o próprio Antônio, quem seria? Todos aguardavam invejosos o momento da revelação. Para o assombro geral, era Teresinha! A amarga e insossa Maria Teresa, que todos chamavam Teresinha, mas longe de ser por afeto ou baixa estatura, e sim pelo comum hábito local das Teresas serem logo transformadas em Teresinhas.

Ela se levantou e sorriu, recebeu o presente sorrindo, feliz pelos elogios e indiferente quanto ao livro. Ela é daquelas pessoas que quase nunca sorri, e que são tão sérias que os seus rostos parecem fazer careta quando esboçam um sorriso. Por isso, a cena de Teresinha sorrindo ao receber o livro jamais saiu da lembrança dos familiares. E assim ficou firmado um costume familiar: para Teresinha, deve-se dar livros, pois ela é a única verdadeira intelectual da família.

Ela, como ficou dito, gostava mesmo era dos elogios que eram feitos antes da entrega do seu novo livro. Mas ela, na verdade, nunca os lia. E até os organizava em suas prateleiras por tamanho e cor. Ora, todo mundo sabe que o que nao é contestado, confirmado está; por isto Teresinha gozou até a morte da fama de boa leitora.

Nesta família, como não raro ocorre também em outras tantas, todos carregam um estigma. Há o tio avarento, o cunhado incoveniente, a tia ranzina, a tia dócil, o primo solteirão, a prima bonitona. E Geraldo, já com 16 anos feitos, tinha um estigma desagradável: o primo adotivo e filho, quiçá, da puta!

Crispava-se de raiva quando os outros utilizavam sua cruz, quer para xingá-lo, quer para adotar uma conduta piedosa. Convicto de que algo deveria fazer para mudar este fato, Geraldo procurou nos livros de Tia Teresinha um termo polêmico, desses que exaltassem a luta contra os militares, mas que não fosse de óbvia compreensão. Afinal, ele não queria chocar tanto o Tio Antônio, que era militar, mas que ele tanto gostava.

Em sua casa, para evitar maiores confusões, após os parabéns cantados para a rica Consuelo, fez-se o incompreensível silêncio que se faz ao partir o bolo. E Geraldo, que não era covarde, mas que também não tinha maiores arroubos de coragem, gritou: "E viva os bolcheviques!!" Os pequenos o acompanharam no viva mesmo sem saber do que se tratava, e os adultos o olharam com espanto.

Após um breve silêncio, Tio Antônio, entre desapontado e desafiado, acabou com as expectativas em relação à sua reação e disse: "Ora, ora, ora, temos um revolucionário!" Deu tapinhas indulgentes nas costas de Geraldo e saiu. Esta foi a última vez que Antônio foi visto na casa de Consuelo.

Esse episódio foi suficiente para que Geraldo pensasse que ganhou o estigma de primo revolucionário. E isto o deixou bem feliz, mesmo ele se deparando com o impasse de não saber como agir tal qual.

Conversando com uma menina hippie com quem teve sua primeira experiência sexual, detalhe completamente desnecessário que nada construirá no relato, Geraldo perguntou como agir para parecer um grande revolucionário. A menina disse que ele deveria começar comprando livros. Ele não entendeu, mas ela deveria saber o que dizia.

E ele comprou muitos, muitos livros alternativos. Mas um pequeno problema tão comum foi o responsável por Geraldo não se tornar o sonhado líder que faria com que todos esquecessem o seu passado paraguaio: falha na comunicação humana. Ele comprava livros, como recomendado, mas os dava de presente, ao invés de lê-los .

O que Geraldo ganhou foi o estigma de grande presenteador de livros indesejados. E por isso, a cunhada organizadora do amigo oculto todos os anos dava um jeitinho brasileiro dele coincidentemente tirar a Tia Teresinha. Assim, todos ficavam felizes! E também assim, as prateleiras de Tia Teresinha foram ficando recheadas de livros aos montes, livros que ninguém lia.

Só que, vez por outra, algum parente com novas metas de início de ano começava a ler, mas não concluía, deixando uma pequena orelha em uma das primeiras páginas do livro. Apesar de ser uma família sem maiores hábitos de leitura, essas pessoas eram organizadas, e Tia Teresinha odiava orelhas nos livros. O que fazia com que todos ratificassem ainda mais a imagem de apreço que ela teria por seus livros.

Certa vez, o sobrinho moleque da família fez orelhas em todas as páginas dos livros de Tia Teresinha, o que resultou nuns dez ocos cascudos e numa atitude radical: Teresinha cortou as pontas de todos os seus livros! Assim, ninguém mais faria orelhas em livros tão intocados. A fama de inteligente que ela tinha era sempre reiterada por esse ou outro espasmo de loucura.

Tia Teresinha morreu em 1985, sem tirar uma grande dúvida que há alguns anos lhe afligia: por que Geraldo insistia em errar seu nome nas dedicatórias, escrevendo-o ora com z, ora com s? Ela não chegou a saber, mas nós, onipresentes no relato, sabemos, e vimos Geraldo comprando livros de sebos que já estavam dedicados. E algumas vezes era de um sobrinho Geraldo qualquer, para uma Tia TereZinha, e outras vezes, para uma Tia TereSinha, o que fazia com que ele volta e meia mudasse a grafia do nome dela.

É porque alguns anos passaram, e Geraldo já estava cheio de dar livros na tentativa de fazer pegar aquele estigma tão difícil. E por isso ele comprava qualquer um, revolucionário ou não, mas com uma dedicatória de um geraldo para uma teresinha ou terezinha quaisquer. O último livro que a deu, e isso ele jamais chegará a saber, ironicamente fazia alguma referência a seu passado paraguaio.

Era um livro de Henfil, que foi parar num outro sebo, vendido pela filha mais velha de Tia Teresinha que estava louca pra se livrar daquele amontoado de traças. Até conseguiu um bom dinheiro com a livrarada toda, mas jamais se livraria do peso na consciência de ter vendido livros dedicados. No entanto, se tivesse um hábito um pouco maior de leitura, saberia que outros tantos fazem isso.

Nós, no entanto, temos que agradecer a essa prima pouco leitora de Geraldo e filha ingrata de Teresinha, pela venda feita ao sebo, ou não estaríamos aqui a relatar essa história. O último livro passou por outros geraldos e outras tantas teresinhas, passou também por algumas marias, etc, etc, até chegar em João Pessoa, distante de seu passado ingrato e de seu estado suprimido entre outros fortes.

Até que uma estudante de direito, que também mereceria um nome se não fosse tão corriqueira sua passagem no relato, assustou-se ao ver uma barata enorme sobre um livro de Cecília Meireles. Os sebos são mesmo muito sujos. Ela olhou melhor, era sua miopia lhe pregando peças, a barata fazia parte da capa do livro.

Pegou com atenção aquele estranho livro sem as pontas das páginas, dedicado a uma tal Teresinha. E decidiu ao ver o nome Henfil, alguém por quem tinha grande admiração, que era aquele o presente que ela estava procurando tanto para dar ao seu amado. Mas essa é uma outra história.

4 comentários:

Pollyana disse...

Texto com gostinho de Gabriel Garcia! Sendo assim, não se acanhe com o tamanho não! kkkk Viu?Adorei!
beijos

Anônimo disse...

Concordo com a comparação..

Beijos..

Caeles disse...

Oiiiii, quanto tempo não atualizo, mas estou voltando a ativa, pode crer! Em breve com textos maiores e melhores!
:)

Anônimo disse...

Gostei bastante da história. Os personagens poderiam fazer parte de um romance meio sombrio. Mas a maior criatividade está na origem; no livro do Henfil. Parabéns, Eduardo