quinta-feira, abril 20, 2006

Diário de um Cucaracha


A nossa história começa em 1963, no Paraguai, numa rua de notívagos de nome nao menos boêmio: Simón Cucaracha. Ele, que foi um grande amante dos bons charutos e das belas prostitutas francesas, em seus dias mais inspirados jamais imaginaria que a tal rua levaria seu nome.

Talvez nem tivesse orgulho, pois todo boêmio faz promessas vãs de sair dessa vida, e até vislumbra planos para tal dia. Mas a vida boêmia é quase como um dom, e dela os boêmios não poderão livrar-se facilmente.

E na semi escuridão de uma dessas noites bêbadas, estava lá outro personagem dessa história: o pai de Geraldo. E foi numa madrugada dessas de arroubos, suor e uns dois bons poemas que todo capadócio sabe de cor, que Geraldo foi concebido.

A mãe dele, que poderia até receber um nome se não fosse tão rapidamente desaparecer de nosso relato, derramou um longo pranto ao descobrir que os planos daquele boêmio não eram exatamente o de construir uma vida estável ao lado dela no Brasil. Ele, na verdade, tinha outros planos, que foram satisfeitos alguns minutos depois daquela conversa de sonhos.

Alguns meses depois, no Espiríto Santo, já em 1964, estaria Teresinha segurando no colo aquele rebento de pai desconhecido e de mãe inominada. O menino, que quase teve Teresinha como mãe, foi enviado para a casa de uma irmã dela, que tinha mais posses e propriedades e, portanto, boas chances de cuidar sem maiores afobamentos de um pequeno abandonado.

Consuelo nunca escondeu de Geraldo a sua procedência incerta, nem que a sua cestinha foi posta primeiramente na casa da Tia Teresinha. O nosso Geraldo, apesar de nao ter maiores problemas com a sua história de vida, sempre olhava para a Tia Teresinha e a imaginava como mãe, o que lhe era insuportável diante dos tabefes e beliscões que seus primos sofriam publicamente.

Teresinha não era uma pessoa esperta, sagaz, mas também nao era desprovida de alguma inteligência mediana. No entanto, todos na família a tinham em conta como pessoa de muita sabedoria e cultura. Ela não lembrava bem de onde surgiu o título, mas gostava dele e se portava como tal, e a essa altura do relato até acredita realmente que é mais esperta que os outros.

Ela não recorda, mas nós temos como voltar um pouco na história e revelar o momento em que Teresinha passou a ser tida como culta. Certamente ela não é a única pessoa que é tida por algo que não é, pois o que não falta no mundo é uma espécie de complexo de aquiles generalizado.

Vamos lá. Os aparentados de Teresinha sempre concordaram que ela era a pior pessoa para presentear em amigo secreto de final de ano. Não é vaidosa, o que exclui a maior gama de presentes femininos; não é afeita a serviços domésticos, o que excluía a porcentagem que restava para dar presentes a uma mulher nos anos sessenta.

O que ano a ano se repetia era a insatisfação pública de Teresinha ao receber o seu presente. Até que em 1967, quando Geraldo ainda era um bebê e por isso não tem como recordar a época em que Tia Teresinha nao era tão culta quanto hoje se sabe, o Tio Antônio, esse sim esperto merecidamente, comprou um livro para Teresinha.

E ao iniciar os enfadonhos elogios que se faz antes da entrega de presentes natalinos, ele inovou. Para o espanto das cunhadas perfeccionistas, o presente nao estava embalado. Era um presente para um homem, pensaram todas. Antônio levantou-se e teceu algumas considerações em torno do seu amigo oculto: "...É a pessoa de maior cultura, indubitável sabedoria, desde sempre conhecida por todos os familiares como uma grande conselheira, profunda conhecedora de diversas ciências!"

Todos, com exceção de Teresinha, que cochilava na cadeira de balanço, estavam curiosos ante a descrição. Ora, se não era o próprio Antônio, quem seria? Todos aguardavam invejosos o momento da revelação. Para o assombro geral, era Teresinha! A amarga e insossa Maria Teresa, que todos chamavam Teresinha, mas longe de ser por afeto ou baixa estatura, e sim pelo comum hábito local das Teresas serem logo transformadas em Teresinhas.

Ela se levantou e sorriu, recebeu o presente sorrindo, feliz pelos elogios e indiferente quanto ao livro. Ela é daquelas pessoas que quase nunca sorri, e que são tão sérias que os seus rostos parecem fazer careta quando esboçam um sorriso. Por isso, a cena de Teresinha sorrindo ao receber o livro jamais saiu da lembrança dos familiares. E assim ficou firmado um costume familiar: para Teresinha, deve-se dar livros, pois ela é a única verdadeira intelectual da família.

Ela, como ficou dito, gostava mesmo era dos elogios que eram feitos antes da entrega do seu novo livro. Mas ela, na verdade, nunca os lia. E até os organizava em suas prateleiras por tamanho e cor. Ora, todo mundo sabe que o que nao é contestado, confirmado está; por isto Teresinha gozou até a morte da fama de boa leitora.

Nesta família, como não raro ocorre também em outras tantas, todos carregam um estigma. Há o tio avarento, o cunhado incoveniente, a tia ranzina, a tia dócil, o primo solteirão, a prima bonitona. E Geraldo, já com 16 anos feitos, tinha um estigma desagradável: o primo adotivo e filho, quiçá, da puta!

Crispava-se de raiva quando os outros utilizavam sua cruz, quer para xingá-lo, quer para adotar uma conduta piedosa. Convicto de que algo deveria fazer para mudar este fato, Geraldo procurou nos livros de Tia Teresinha um termo polêmico, desses que exaltassem a luta contra os militares, mas que não fosse de óbvia compreensão. Afinal, ele não queria chocar tanto o Tio Antônio, que era militar, mas que ele tanto gostava.

Em sua casa, para evitar maiores confusões, após os parabéns cantados para a rica Consuelo, fez-se o incompreensível silêncio que se faz ao partir o bolo. E Geraldo, que não era covarde, mas que também não tinha maiores arroubos de coragem, gritou: "E viva os bolcheviques!!" Os pequenos o acompanharam no viva mesmo sem saber do que se tratava, e os adultos o olharam com espanto.

Após um breve silêncio, Tio Antônio, entre desapontado e desafiado, acabou com as expectativas em relação à sua reação e disse: "Ora, ora, ora, temos um revolucionário!" Deu tapinhas indulgentes nas costas de Geraldo e saiu. Esta foi a última vez que Antônio foi visto na casa de Consuelo.

Esse episódio foi suficiente para que Geraldo pensasse que ganhou o estigma de primo revolucionário. E isto o deixou bem feliz, mesmo ele se deparando com o impasse de não saber como agir tal qual.

Conversando com uma menina hippie com quem teve sua primeira experiência sexual, detalhe completamente desnecessário que nada construirá no relato, Geraldo perguntou como agir para parecer um grande revolucionário. A menina disse que ele deveria começar comprando livros. Ele não entendeu, mas ela deveria saber o que dizia.

E ele comprou muitos, muitos livros alternativos. Mas um pequeno problema tão comum foi o responsável por Geraldo não se tornar o sonhado líder que faria com que todos esquecessem o seu passado paraguaio: falha na comunicação humana. Ele comprava livros, como recomendado, mas os dava de presente, ao invés de lê-los .

O que Geraldo ganhou foi o estigma de grande presenteador de livros indesejados. E por isso, a cunhada organizadora do amigo oculto todos os anos dava um jeitinho brasileiro dele coincidentemente tirar a Tia Teresinha. Assim, todos ficavam felizes! E também assim, as prateleiras de Tia Teresinha foram ficando recheadas de livros aos montes, livros que ninguém lia.

Só que, vez por outra, algum parente com novas metas de início de ano começava a ler, mas não concluía, deixando uma pequena orelha em uma das primeiras páginas do livro. Apesar de ser uma família sem maiores hábitos de leitura, essas pessoas eram organizadas, e Tia Teresinha odiava orelhas nos livros. O que fazia com que todos ratificassem ainda mais a imagem de apreço que ela teria por seus livros.

Certa vez, o sobrinho moleque da família fez orelhas em todas as páginas dos livros de Tia Teresinha, o que resultou nuns dez ocos cascudos e numa atitude radical: Teresinha cortou as pontas de todos os seus livros! Assim, ninguém mais faria orelhas em livros tão intocados. A fama de inteligente que ela tinha era sempre reiterada por esse ou outro espasmo de loucura.

Tia Teresinha morreu em 1985, sem tirar uma grande dúvida que há alguns anos lhe afligia: por que Geraldo insistia em errar seu nome nas dedicatórias, escrevendo-o ora com z, ora com s? Ela não chegou a saber, mas nós, onipresentes no relato, sabemos, e vimos Geraldo comprando livros de sebos que já estavam dedicados. E algumas vezes era de um sobrinho Geraldo qualquer, para uma Tia TereZinha, e outras vezes, para uma Tia TereSinha, o que fazia com que ele volta e meia mudasse a grafia do nome dela.

É porque alguns anos passaram, e Geraldo já estava cheio de dar livros na tentativa de fazer pegar aquele estigma tão difícil. E por isso ele comprava qualquer um, revolucionário ou não, mas com uma dedicatória de um geraldo para uma teresinha ou terezinha quaisquer. O último livro que a deu, e isso ele jamais chegará a saber, ironicamente fazia alguma referência a seu passado paraguaio.

Era um livro de Henfil, que foi parar num outro sebo, vendido pela filha mais velha de Tia Teresinha que estava louca pra se livrar daquele amontoado de traças. Até conseguiu um bom dinheiro com a livrarada toda, mas jamais se livraria do peso na consciência de ter vendido livros dedicados. No entanto, se tivesse um hábito um pouco maior de leitura, saberia que outros tantos fazem isso.

Nós, no entanto, temos que agradecer a essa prima pouco leitora de Geraldo e filha ingrata de Teresinha, pela venda feita ao sebo, ou não estaríamos aqui a relatar essa história. O último livro passou por outros geraldos e outras tantas teresinhas, passou também por algumas marias, etc, etc, até chegar em João Pessoa, distante de seu passado ingrato e de seu estado suprimido entre outros fortes.

Até que uma estudante de direito, que também mereceria um nome se não fosse tão corriqueira sua passagem no relato, assustou-se ao ver uma barata enorme sobre um livro de Cecília Meireles. Os sebos são mesmo muito sujos. Ela olhou melhor, era sua miopia lhe pregando peças, a barata fazia parte da capa do livro.

Pegou com atenção aquele estranho livro sem as pontas das páginas, dedicado a uma tal Teresinha. E decidiu ao ver o nome Henfil, alguém por quem tinha grande admiração, que era aquele o presente que ela estava procurando tanto para dar ao seu amado. Mas essa é uma outra história.

quarta-feira, abril 19, 2006

O Conforto das Razões Inexplicáveis


O Conforto das Razões Inexplicáveis



Sento-me na frente da TV esperando a próxima desculpa esfarrapada pelo atraso dele desta vez, e lembro de uma história muito antiga que uma vez me contaram sobre a origem da satisfação masculina de correr junto com mais outros tantos homens suarentos por mais de uma hora.

Diz a lenda que existia um ritual antiqüíssimo , originário dos povos ‘Futibulis’, na região comumente conhecida como ‘Gôles’, imagino que próxima, muito próxima da atual Mongólia.Consistia em uma simples e rudimentar ritualística, onde os machos da tribo componentes da seita secreta vestiam-se e paramentavam-se para a execução dos atos a ela concernentes, com o objetivo de livrarem-se de todos os pensamentos racionais, algo que em outras filosofias se repete, citando-se como exemplo a busca pelo nirvana.

As posições exercidas por cada um dos mebros eram bem delimitadas na ritualística, variando de acordo com as habilidades demonstradas, papel de liderança, e, é claro, a hierarquia ‘Futibulis’que poderia ser determinada ou identificada através do título de ‘Dono do Círculo de Adoração Sagrada’, que dizem os historiadores, tratar-se do que hoje inofensivamente chamamos de ‘bola’.

Durante o curso da celebração, todos corriam em uma área aberta em formto retangular gritando palavras incompreensíveis, gesticulando e suando, e se possível, tendo o máximo de contato físico de canelas com canelas até que esta região do corpo ficasse roxa e bastante machucada. O ponto alto do ritual era quando um dos membros da seita secreta conseguia habilmente introduzir com bastante estardalhaço o ‘Circulo de Adoração Sagrada’ em um grande retangular altar. Neste momento, todos gritavam, faziam gestos ou jogavam-se uns sobre os outros até que alguém sufocasse.

Findavam-se todos os atos com a emissão de um som mágico emitido pelo ‘Grã Mestre da Sabedoria’, que segundo estudos ritualísticos trajava-se de sempre de preto, mas nem sempre era um indivíduo bem quisto entre os demais. Exaustos, machucados e sujos, bebiam em comemoração um líquido alucinógeno de coloração amarelada e espumante e que deveria ser servido gelado.
Sinto-me muito mais aliviada hoje pelo homem ter evoluído desses tempos inglórios. Só assim não preciso tentar explicar aquele sorriso estranho do meu marido quando ele me chega atrasado toda terça á noite, suado, sujo e arrebentado e mesmo assim satisfeitíssimo. Tira as chuteiras e as meias, me mostra uma unha estropiada e roxa, olha para mim feliz e diz: “Acho que essa vai cair”.

quinta-feira, abril 06, 2006

Com açúcar e com afeto (para ler ouvindo)



Explicar, aquilo que se chama dar nome aos sentimentos, eu nunca soube. Mas hoje, sem saber como, até porque já disse que não sei explicar, eu sentia que ia ser diferente. Durante a manhã, depois da novela reprisada, fiquei olhando pela janela. Não sei quanto tempo passei olhando os passantes, mas quase perdi a hora e, imaginem só, por um nada não atraso o almoço. Você vai chegar com fome. É preciso estar tudo pronto, porque hoje vai começar a ser tudo diferente.
Colocando a mesa, vi o ponteiro pequeno avançado, e calculei o atraso. Eu conheço você, sei que está atrasado porque vai me trazer uma surpresa, afinal, hoje começa tudo novo. Nossa! Então já que vai me trazer um presente, preciso melhorar a comida. É melhor fazer aquele doce, assim você não resiste.
Enquanto faço o doce penso em tanta coisa nova que vai acontecer, o carteado com os casais amigos, as longas conversas antes de dormir, o olhar de cumplicidade quando um já sabia o que o outro ia dizer, o toque carinhoso pra ninguém ver... E quase choro quando me imagino abrindo os olhos de manhã e não sentindo a companhia insistente da solidão.
Depois disso, ainda espero o ponteiro pequeno avançar mais no espaço branco. Eu sinto fome, deve ser ansiedade diante de tanta novidade acontecendo. Você entra, eu disfarço o cochilo, e olho para as suas mãos buscando a surpresa que já espero. Por que elas estão vazias? Você, depois de um sorriso espaçoso que me faz pensar que aquele é meu melhor presente, diz que trabalhou muito, e que está sem fome. Eu vou seguindo você até o quarto, e deito na cama enquanto penso que a minha fome também passou. Fico te olhando tirar os sapatos, a roupa, enquanto fala e fala sobre a manhã grande que teve. Vai entrando no banheiro, e me pergunta, sabendo que a resposta não virá, o que me aconteceu hoje. Tanto sabe que não há nada a dizer, que já engata outra frase antes mesmo que eu pudesse lembrar que fiz aquele doce.
Eu escuto a sua voz vindo com cheiro de banho, mas sem saber o que você está dizendo, vou refazendo os planos. O olhar de cumplicidade já vai me parecendo difícil, quem sabe o carteado ainda dá... Sua voz já está bem perto de mim quando vejo que você está vestido, com aquele terno, o mais bonito. Não acredito que você já vai sair. Mas você já viu essa minha cara outras vezes, e sabe que é só falar antes de mim pra eu não ter o que dizer depois de você. Dessa vez, o velho argumento, é preciso trabalhar, por comida em casa. Sorrio sem dentes, e penso na comida toda que vai pra geladeira.
E lá vai você, a caminho do nobre ofício. Eu, já vendo a marca de meus braços na base da janela, vou olhar você indo embora. Penso que talvez ainda não seja hoje o dia do recomeço. Sei que há um bar em cada esquina, e que você tem que comemorar. Sei lá o quê.
Você entra no bar, como eu já sei, e senta na cadeira branca com marca de cerveja no encosto. Fazendo aquele gesto que em nenhum outro lugar quer dizer alguma coisa, faz com que o garçom sirva algo bem gelado. E bebe. Será que, ali, enquanto sente o gole descendo pela garganta, pensa em mim? Pensa que sou sozinha? Que trabalhei para fazer e desfazer o almoço que você não teve fome de comer? Pensa que hoje já não dá mais, quem sabe amanhã? Pensa? Não, você não pensa em nada disso, porque alguém já sentou do seu lado, e estão conversando. O gol tão bonito que o craque fez no domingo, mas também o gol que o mesmo craque perdeu, e alongam-se mais no último assunto, porque a parte ruim dá mais pra falar.
Entre o time que subiu e o time que desceu para a tal da divisão, passou aquela saia que não passou sem ser notada, e bem anotado ficou o telefone no guardanapo fino, daqueles que não limpa nada, mas que serve tão bem para anotar o que não pode passar sem ser notado. E a saia bronzeada vai embora, levando o sorriso da paquera que desconheço, mas que sinto tão lancinante que desfaço o provérbio do maldito coração que não sente quando os olhos não estão vendo.
Quando sinto as primeiras picadas dos mosquitos em meus braços, percebo que está escurecendo, é hora de sair da janela. Não sinto raiva deles, dos mosquitos, eles me rememoram que posso sentir. Um quase sorriso vem pro meu rosto, é que pensei que se eu dissesse, você diria que faço drama, não há de ser tão ruim quanto eu faço parecer. Enquanto fecho a janela, quase escuto a sua voz cantando animado. O seu novo amigo sabe como ninguém aquele velho sambinha, você aperta o peito de tanta saudade enquanto canta o refrão choroso e eu choro sem lágrima enquanto a música ecoa.
No final da música, você olha o copo, tá quase seco. O gesto pra pedir mais já não tem o mesmo ânimo, é que você está começando a cansar. A fome que você disse não sentir aparece, e o desmente apertando com força o seu estômago. A comida está gelada agora, mas eu vou estar aqui para esquentar, é o que você pensa. Eu não vou, dessa vez eu não vou.
A vida que leva não o deixa feliz, mas ainda assim é essa que você vai levando, sem nada mudar. Você vai precisar falar muito antes de mim, sabe disso. E eu vou estar cansada, mas vou ouvir tudo, para no final dizer que não dá mais pra continuar. O quê, eu não sei, mas isso não dá pra continuar. E você entra, eu penso que digo oi, mas nao digo. Sem saber por que, olho de novo para as suas mãos sem presente. Elas estão tão sujas, mas o seu sorriso é ainda melhor que o da manhã, e apesar de você não falar nada, ele me diz: Amanhã, vai ser diferente, vai ser tudo novo.
Eu não falo nada, quem sabe assim você percebe como estou magoada, mas você faz o que eu mais temia. Deita no meu colo e chora. Diz que a nossa vida vai mudar, mas diz baixinho, pra que nada ali se lembre de sua promessa amanhã caso não seja verdade, nem eu.
Você parece cansado. Passo a mão no seu cabelo sujo e penso na noite triste que tive sem você falando enquanto toma banho. Eu penso que você deve estar com fome, e pergunto se você quer que eu esquente a sua comida. Ao ouvir o sim, digo que vá tomar um banho, e fique falando alto enquanto eu esquento o seu prato.
Lá vem sua voz de novo com aquele cheiro, eu não escuto o que você diz, mas preciso que você fique ali, falando. Eu não sei explicar, já disse mais de uma vez. Eu vejo sua foto na parede, tem nela aquele sorriso que é o meu presente, a minha surpresa. Beijo a foto enquanto não te beijo, e sei que amanhã eu vou te ter na hora certa pro carteado, com aquele olhar cúmplice, já sabendo o que eu vou dizer. Eu sei que vai.









Homenagem a um coração apaixonado


Homem, caucasiano, vinte e dois anos, estatura mediana, signo de libra, regido por Vênus e Marte, refinado gosto literário, aguçado senso critico, e uma unha prestes a cair no dedo indicador direito.
Acompanho sua saga há tempos. Por vezes com um certo interesse científico, outras com a ira de uma criança contrariada, e ainda outras com a benevolência dos amigos. Acho que seria desnecessário dizer que prefiro a última.
Tenho a missão de dizer-lhe, baseada na sua história conturbada, e abusando das frases de auto-ajuda que o amor é tolo e injusto.
Isso posto, peço licença as amigas, pois pretendo aqui homenageá-lo publicado essa semana um e-mail enviado por ele que toca o coração de qualquer pessoa que um dia já teve uma paixão:

A saga de uma paixão:
Como é possível? Como é que ela me manda uma mensagem daquelas? Não é justo. É desumano, arrasador. Oferecer aquilo a mim, sem eu ter condições plenas de acompanhar, de satisfazer aquela tentação. Como pode?
Aquele e-mail chegou assim de repente e me deu um susto! Não sabia nem o que sentir. Alegria e angústia ao mesmo tempo. No começo confesso que fiquei eufórico. Poxa, tudo que eu queria! Fui lá, vi tudo com alvoroço. Queria tudo, não deixar sobrar nada. Mas não dava, era muito, não dava pra mim. Só um pouco então? Mesmo assim. Eu já estava no limite depois da semana passada. Eu sei que ainda vão surgir novas chances. Ela é assim, sempre oferecendo novas oportunidades. É realmente sedutora. Se você passa por perto, ela pega você e não larga mais.
Fechei tudo e resisti. Senti-me até bem! Poxa, eu resisti! Eu posso me controlar. Isso é bom. Inteligência emocional é importante. Não dá pra ficar sempre atendendo aos nossos desejos, se não a gente se estrepa.
Mas mesmo assim o e-mail ainda está lá, na minha caixa. Ainda o abro pra ver que coisa linda é aquilo, aquele assunto delicioso informando a oferta dela: Lojas Americanas - Todos os livros com frete grátis para todo o Brasil
.

segunda-feira, abril 03, 2006

Autobiografia sem Memória


Acho que comecei a pensar no tempo quando tive que amargar o peso do conectivo “E” na minha idade... Vinte E um, vinte E dois... Para mim, bem que poderia ser menos dramático se fosse o infame conectivo aditivo substituído por um alternativo. Vinte OU três, vinte OU quatro... Só assim poderíamos gozar da imunidade de alterar comportamentos. Para os compromissos, vinte, para um denguinho e irresponsabilidades três. Pode crer que seria a solução para a paz mundial.

Já arrastando este infame conectivo, um certo dia confessei a uma amiga, a quem não ouso apontar o indicador, que desejava escrever minha autobiografia, e que o faria desde já, antes que os anos embotassem a memória, antes que o peso dos anos futuros emprestassem um falso glamour aos meus tediosos dias atuais.

A amiga, a quem o indicador insiste em apontar, recebeu a “brilhante idéia”, com uma sacudidela de ombros e um sorrisinho de deboche desacreditando a minha resignada determinação em enfrentar a audacioso projeto e ainda arrebatou com uma sentença em tom de praga, bruxaria, vodu ou sei lá o quê. O ânimo de antes resultou em um gosto de carne crua de realidade, e no consecutivo abandono na primeira e previsível linha do “eu nasci”.

Agora, a meio caminho de completar vinte E (olha ele ai novamente!) cinco anos, (o que já é a metade de cinqüenta, veja lá!), e já amargando a caquetice de achar as coisas estáticas, previsíveis ou acabadas, dei-me por retomar os planos, digamos que um tanto que ousados, de escrever uma autobiografia sem memória, e explico, desta vez menos megalomaníaca em abrangência dos mínimos segundos, afinal nunca fui muito apreciadora dos elefantes, e muito mais afeita àquelas lembranças que de tão caras, tornam-se concretas a ponto de pendurarmos na parede das sensações eternas e não perseguir os rastros de um passado embaçado e sem gosto.

Dadas as devidas justificativas preâmbulares, e antes que mais ombros indeterminados sacudam-se pelo riso do meu ingênuo intento, alerto de antemão que só o faço justamente pelo medo de esquecer as cenas que de preciosas e singelas fazem parte desse filme de espectador solitário, medroso e arfante, que hoje, antes de dormir, recordou-se de como quando era criança sua mãe soprava-me os pés por ela descalçados só para agradar-me com o frescor, e depois punha-me na cama, desdobrava o lençol recém lavado e o sacudia sobre meu corpo semi adormecido o deixando pousar suave, flutuando sobre o ar perfumado de sono. E ela o fazia sorrindo, como se aqueles fossem os atos de encantamento mágico, uma, duas, três vezes... Até aquele lençol solto no ar se tornar as portas do meu sono infantil. E hoje, estou aqui, lutando com um sono com o qual não consigo negociar, sabendo que o que me faltam são as sopradelas nos meus pés descalços, e o lençol perfumado, o sorriso, a mágica e a porta, e uma, duas, três vezes e zaz!

Amiga e ombros alheios, é assim que vou começar um dia a minha autobiografia sem memória, com esse soprinho nos pés...