sexta-feira, janeiro 20, 2012

As Portas

Esse texto já estava "rondando" minha cabeça há muito tempo, fico feliz de hoje ele finalmente ter parado de me "assombrar" e aparecido por completo!

Escutava o barulho do ponteiro raspando com dificuldade entre a passagem de um minuto para o outro. O barulho oco dentro do apartamento ainda parecia muito mais razoável do que o ronco do seu estômago reclamando atenção, já que tinha negligenciado à hora do seu café matinal apenas para ouvir o tilintar da xícara, e o girar lento da colher dissolvendo o açúcar.

Adivinha um meio sorriso de satisfação que seria seguido de um olhar pela janela avaliando o tempo, e hoje estava nublado, certamente ele levaria consigo o guarda-chuvas, pensou. Logo depois ele olharia no espelho e passaria os dedos pelos cabelos pegando as chaves ruidosamente, neste exato momento, e por fim abre a porta que reclama o abandono de seu dono rangendo, e a fecha com uma força desnecessária, para depois sair vagarosamente pelo corredor, montado nos mesmos passos firmes de todos os dias. Fim do primeiro ato. Respira fundo.

Só agora atende ao apelo convulso do seu estômago e serve seu café morno, e vai bebê-lo próximo da janela, oculta pelo voal branco, comodamente fechado, enquanto assiste ele distanciando-se na rua, e já espera seu último olhar para cima, como se tivesse acabado de lembrar que se esqueceu de algo no apartamento e que restará esquecido, quem sabe lembrará amanhã. Fim do segundo ato.

Essa é sua dança, uma coreografia que já pintou tantas vezes na sua cabeça que por vezes se pega imitando os gestos que imagina dele, e girando a chave no mesmo momento que ele o faz, mas jamais ousaria abrir a porta.

Acredita no absurdo, que já usam uma comunicação sem palavras. Sua porta e a porta dele, bem em frente da sua, que se fitam sem remédio e sem desculpas, pela pura falta de sorte de não poderem fugir desse destino de assim estarem. Abre, bate, fecha, trava. Seguido. Sempre na mesma ordem. Não confia nas fechaduras, mas nesse ritmo que segue para fazer essa seqüência de ações que sua mente classificou como essenciais. É quase uma música. Uma orquestra inteira quiçá. Imagina-se igualmente dançando. Treinando sem cessar rodopios seguidos. Sente-se leve com este pensamento e até sorri.

Imagina que lamentável destino que tem a sua porta branca, que agora finalmente é aberta para que a sua dona a abandone para suas obrigações do dia. Repara no número que precisa de conserto. Um 6 meio torto que parece tão triste e solitário quanto ela. É sua vez de olhar uma última vez, mas para a porta dele de cor escura, com aquele 9 altivamente irritando-a por ser guardião intransponível de tudo que ela mais deseja.

******
Espera o despertador tocar, mas já está acordado a tanto tempo que tenta recordar se chegou a dormir algum minuto daquela noite. Mas sente-se aliviado de finalmente não estar atado ao compromisso de sonhos rebeldes, nos quais se vê em uma repetição sem fim dos mesmos gestos.

Entra no chuveiro com todos os vestígios desses pensamentos e espera que a água o redima para o resto do dia. Prefere-a gelada e imagina-se um faquir por sentir como se milhares de espadas o transpassassem o corpo inteiro. É a dor que o devolve para a sensação de algo que ele costuma chamar de realidade.

Desenvolveu o hábito de revisar mentalmente a agenda do dia enquanto está no banho. Já há algum tempo sente-se tão ansioso por esse início de manhã, sem saber exatamente por que, que já se percebeu velejando por imagens e lembranças que em nada se relacionam com seus relatórios e prazos. Dia desses quase aceitou o conselho de um amigo que receitou alguns patoás feitos por um ubandista no Flamengo. Crê-se assombrado. Mas não consegue evitar a lembrança da imagem dela diante dele. Os cabelos loiros soltos e caídos sobre os ombros.

E perde-se nesses pensamentos tolos de o que ela deverá estar fazendo neste momento, enquanto displicentemente fica a girar o açúcar no café recém passado. Pensa que ela deve estar a espreguiçar-se languidamente sobre a cama, ou a escovar os cabelos lentamente ou quem sabe saindo do chuveiro e imagina ainda que o frio da manhã a deixa arrepiada. Sacode a cabeça energicamente como se tentasse acordar mais uma vez.

Recolhe a pasta, documentos e chaves. Para no espelho e repara nas olheiras pesadas e cada vez mais profundas sobre seus olhos. E se permite pensar que ao bater a porta ao sair, ao menos assim, estaria chegando de alguma maneira também nos pensamentos dela, nem que fosse incomodando-a na leveza da manhã que ele imagina. Cada dia bate mais forte a porta sem se perceber disto. E fecha os olhos imaginando-a franzir a testa com o barulho. E essa imagem o satisfaz. Espia uma última vez a porta do apartamento 6 e pensa em um dia bater. Só nunca consegue imaginar o que seria depois. O que diria. Nunca acha palavras, nunca encontra coragem.

Segue perdendo-se no corredor e depois pelas escadas apressadamente e seu coração bate tão forte, e prefere pensar que aquele esforço matinal de descer dois lances não está lhe fazendo muito bem, precisa fazer exames médicos, quiçá mentais! Finalmente alcança a calçada. Respira fundo e vira em direção à janela dela. E lá está. Bebericando café como todos os dias, linda visão escondida atrás daquele voal. Imagina se um dia acenará para ele, e imagina que guarda um sorriso para ele todas as manhãs. Não hoje. Quem sabe amanhã...

E termina por desaparecer.