segunda-feira, abril 30, 2012

Cárcere

Ela andava arrastando o meu olhar.

Colocava a mão fechada na curva do quadril por puro deboche da minha cativa prisão que balançava junto à cadência de seu andar de nuvens, enquanto eu tropeçava em desejos maltratados.

Prisioneiro conformado, agradeceria ajoelhado se fosse preciso o fato de estar algemado aos olhares descrentes da carcereira faceira que havia arrumado na esquina da Rua São José, que me negava o pão e a água, mas não o perfume de seus cabelos, pois este a graça era quem concedia!

A mim dedicava a ilusão de me ignorar por completo, mas enchia-me o peito de alegria ver que espiava hora e vez se lá me mantinha obediente, mirando sem fim o movimento da sua cintura. A certeza de que lhe sou devoto rega sua vaidade, disto nunca tive dúvidas, todas gostam. E negam... (É claro!).

Chegava sempre antes que ela entrasse para o trabalho. Ria-se alto como se para anunciar que agora eu poderia respirar. E se não durmo pela noite é culpa destes versos sem rumo que ela cantarola durante o dia inteiro e que povoa meus pensamentos pela noite.

Atrás do balcão daquele bar ordena como a uma orquestra afinada, xícaras e açucareiros, pratos e talheres. Sento-me, como sempre, na mesa do canto esquerdo, com visão privilegiada para o decote de sua blusa estampada, que se insinua abusado quando ela manuseia os botões gastos do caixa emperrado.

As saias eram uma atração à parte. Sempre longas e marcadas na cintura. Sua favorita era a azul. Tecido já meio puído, de um algodão fino que a luz do sol que entrava pela porta denunciava as coxas roliças por dentro delas.

Nem vulcões na Indonésia, nem aurora boreal na Antártida, o melhor espetáculo da terra poderia acontecer a qualquer minuto na minha frente, bastava que ela passasse languida entre as mesas e a sua saia, que até parece que tinha vontade própria, volteava displicente e me tocava a perna. Por esse arrepio pagaria com a alma!

Passava boa parte do dia fitando-a por trás das folhas do meu jornal de ontem. Ornada em avental e toda revestida dessa ideia malograda de mulher casada e descente só para me atormentar. Honestidade a toda prova. Adição de mazelas ao meu rosário de malfeitos. Sou homem de poucas convicções, mas uma delas é de que o simples não poderia ser pecado. Porque a beleza não merece contraditório.

Dona dos meus suspiros, ela torcia a boca de leve quando alguém lhe lembrava da minha existência silenciosa naquele mesmo canto todos os dias. Relhava com todos e pediam que fossem procurar o que fazer, pois ela tinha e muito. Dava as costas e se ria solitária e furtiva do meu desconcerto.

Servia-me o café e depois enxugava as mãos no avental batendo duas a três vezes. Não fazia perguntas, não me olhava dentro dos olhos. Mas deixava de propósito que uma gota de suor caído de sua nuca escorregasse entre os seios, enquanto eu inspecionava seus gestos e lhe retribuía com meio sorriso sem graça abandonado nessas olheiras de consumição, mal escondendo a ereção infantilmente disfarçada pelas minhas pernas cruzadas e o jornal amassado.

Ela faz não notar por travessura medida, mas domina todos os meus sentidos pelos controles remotos dos seus quadris e durante o dia vai apertando meus botões com aqueles seus olhos pequenos. Mas não ligo que ela me maltrate. Não ligo com quilos que já perdi apenas para lhe escutar respirar, pois estou certo que sou eu em quem ela pensa quando banha-se de água de perfume ao acordar, e que são para mim os versos de amor que cantarola o dia inteiro. Não me importa que ela me inunde de veleidade, contanto que me guarde um lugar em seu travesseiro, no escuro e secreto recanto de seus prazeres serei eu que lhe despirei as saias e lhe rasgarei a blusa, que lhe causarei sorrisos escorridos e lhe arrancarei gemidos.

No fim do dia ela admira-se no pequeno espelho de moldura laranja ao lado da porta da cozinha e tenta recompor os cabelos presos no topo da cabeça. Por um breve momento os solta por completo para logo em seguida reorganiza-los apressadamente no mesmo penteado. Nesse breve intervalo, entre soltá-los e prende-los novamente, sou homem refeito. Imagino-me levantando da cadeira na mesa do canto esquerdo, cruzando as demais mesas em reboliço, e segurando forte aquelas crinas negras entre os dedos, respirando profundamente o cheiro doce do seu suor e beijando seus lábios de espanto.

Antes de deixar-me largado envolto nos meus sonhos ela dá um adeus gentil para todos e me lança um olhar triste de soslaio que só eu percebo e agarro como se me lançasse uma rosa teatral. Depois segue descendo a rua e arrastando minha vida.

Imagem:http://www.bancodearte.net/dias-ramos/lavadeiras/
Ao som de: Jorge Drexler (Un Lugar en Tu Almohada) - http://www.youtube.com/watch?v=UzwraaGDeXY&feature=fvst

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Carbono


Sente falta do tempo onde tinha que colocar papel carbono na máquina para copiar letra por letra todas as palavras. Gostava principalmente da força que colocava nas teclas, cada batida e o som abafado das folhas.

Um tanto questionável esse seu gosto pela dificuldade da cópia, quando todos os seus sentidos são forjados, imitados por adequação. Nunca encontrou dentro de si o que pudesse chamar de original ou selvagem. Sente falta de instintos.

A maior parte dos motivos são pouco lógicos, e na maioria egoístas, e nem por isso menos legítimos. Conhece pessoas que adotam alguma razão para justificar escolhas muito mais absurdas, e nem por isso mais ou menos condenáveis.

Então sorteia alguma razão da urna dos motivos e a ela segura forte entre as mãos e segue. Tergiversando no meio da festa, barulho e som alto, adotando a melhor das performances das simpátias copiadas e sente-se beijada pelo beijo alheio.  O dele. Sempre o dele.

“Boa noite”, beijos e cumprimentos. Corpos balançando no ritmo da música que gira. Olhares de cumplicidade dirigidos aos olhos que o tocam no outro canto da sala, e tocam a ela na mesma medida. Uma sintonia forjada, uma história inventada para substituir a que não viveram, para apagar, para regar a memória de um esquecimento, para isso e para além, coloca-se distante, e ao mesmo tempo próxima dessa imitação. Do arremedo da constância.  

É fácil distinguir aquilo que é copiado, e ela o sabe bem. A consciência trinca seu espelho. Irritante essa imprecisão, esse vazio entre as vírgulas. Ainda mais angustiante por não pertencer ao laço dos sorrisos, que é como um tear invisível, criando fios um a um, tecendo um laço entre uma ponta e outra, de quem dá para quem recebe. Retribui na mesma moeda de um gesto sem explicação, herança de um antepassado que não traduzia em palavras o que sentia e transmutava em músculos e dentes o que não sabia dizer. Ele é todo músculos e dentes.

Ele abraça o primeiro corpo que lhe aparece, e o mesmo ela o faz. Enreda os dedos por entre os cabelos de uma moça embrulhada em ilusão, e ela o repete no outro canto, com outra alma passageira e ávido por uma gota de desejo qualquer. Assim seguem uma coreografia espelhada de gestos, prazeres e desgostos.

Suas cópias são melhores que as dele, e ela não sabe se deve se orgulhar disso, mas de alguma forma regozija-se, qualquer um pode perceber pelo olhar furtivo que ela lança ao lado oposto da sala. Talvez por acreditar muito mais, talvez por usar da mesma força que lembra que empregava em cada tecla das letras da sua antiga máquina de escrever. Forjando as melhores palavras e agora os melhores sentidos.

 Mas ele ainda assim sorri parado, atado em outros braços, naquele mesmo canto de sala, deixando a mostra tudo o que pretende inexistente, desafiando a ordem, expondo os recantos secretos onde esconde a existência dela dentro dele.

Por vezes se surpreende no mesmo devaneio de sempre, se perguntando se essa sombra, esse papel copiado, será tudo que terá. Mas continua esperando pela simples falta de ponto nas frases. Lançando migalhas aos pombos gordos na frente do seu prédio. É o mesmo que faz com ela quando ele usa desses infinitivos.

Ela é a cópia, o espelho. É a cria do desejo, é o beijo que nunca foi dado. Marca indelével da própria criação.

E assim estão unidos, o original forjado e a cópia da invenção. Os dois são fantoches, imitadores do amor alheio, esse será sempre o papel que terão um em frente ao outro. Fazendo da vida uma folha de carbono, copiando atos e sentimentos, tornando da vida própria a alheia, escolhendo lados, mas sempre inversos e ausentes.

Tarde ao som de: Someone Like You - Adele/ Take it All - Adele

sexta-feira, janeiro 20, 2012

As Portas

Esse texto já estava "rondando" minha cabeça há muito tempo, fico feliz de hoje ele finalmente ter parado de me "assombrar" e aparecido por completo!

Escutava o barulho do ponteiro raspando com dificuldade entre a passagem de um minuto para o outro. O barulho oco dentro do apartamento ainda parecia muito mais razoável do que o ronco do seu estômago reclamando atenção, já que tinha negligenciado à hora do seu café matinal apenas para ouvir o tilintar da xícara, e o girar lento da colher dissolvendo o açúcar.

Adivinha um meio sorriso de satisfação que seria seguido de um olhar pela janela avaliando o tempo, e hoje estava nublado, certamente ele levaria consigo o guarda-chuvas, pensou. Logo depois ele olharia no espelho e passaria os dedos pelos cabelos pegando as chaves ruidosamente, neste exato momento, e por fim abre a porta que reclama o abandono de seu dono rangendo, e a fecha com uma força desnecessária, para depois sair vagarosamente pelo corredor, montado nos mesmos passos firmes de todos os dias. Fim do primeiro ato. Respira fundo.

Só agora atende ao apelo convulso do seu estômago e serve seu café morno, e vai bebê-lo próximo da janela, oculta pelo voal branco, comodamente fechado, enquanto assiste ele distanciando-se na rua, e já espera seu último olhar para cima, como se tivesse acabado de lembrar que se esqueceu de algo no apartamento e que restará esquecido, quem sabe lembrará amanhã. Fim do segundo ato.

Essa é sua dança, uma coreografia que já pintou tantas vezes na sua cabeça que por vezes se pega imitando os gestos que imagina dele, e girando a chave no mesmo momento que ele o faz, mas jamais ousaria abrir a porta.

Acredita no absurdo, que já usam uma comunicação sem palavras. Sua porta e a porta dele, bem em frente da sua, que se fitam sem remédio e sem desculpas, pela pura falta de sorte de não poderem fugir desse destino de assim estarem. Abre, bate, fecha, trava. Seguido. Sempre na mesma ordem. Não confia nas fechaduras, mas nesse ritmo que segue para fazer essa seqüência de ações que sua mente classificou como essenciais. É quase uma música. Uma orquestra inteira quiçá. Imagina-se igualmente dançando. Treinando sem cessar rodopios seguidos. Sente-se leve com este pensamento e até sorri.

Imagina que lamentável destino que tem a sua porta branca, que agora finalmente é aberta para que a sua dona a abandone para suas obrigações do dia. Repara no número que precisa de conserto. Um 6 meio torto que parece tão triste e solitário quanto ela. É sua vez de olhar uma última vez, mas para a porta dele de cor escura, com aquele 9 altivamente irritando-a por ser guardião intransponível de tudo que ela mais deseja.

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Espera o despertador tocar, mas já está acordado a tanto tempo que tenta recordar se chegou a dormir algum minuto daquela noite. Mas sente-se aliviado de finalmente não estar atado ao compromisso de sonhos rebeldes, nos quais se vê em uma repetição sem fim dos mesmos gestos.

Entra no chuveiro com todos os vestígios desses pensamentos e espera que a água o redima para o resto do dia. Prefere-a gelada e imagina-se um faquir por sentir como se milhares de espadas o transpassassem o corpo inteiro. É a dor que o devolve para a sensação de algo que ele costuma chamar de realidade.

Desenvolveu o hábito de revisar mentalmente a agenda do dia enquanto está no banho. Já há algum tempo sente-se tão ansioso por esse início de manhã, sem saber exatamente por que, que já se percebeu velejando por imagens e lembranças que em nada se relacionam com seus relatórios e prazos. Dia desses quase aceitou o conselho de um amigo que receitou alguns patoás feitos por um ubandista no Flamengo. Crê-se assombrado. Mas não consegue evitar a lembrança da imagem dela diante dele. Os cabelos loiros soltos e caídos sobre os ombros.

E perde-se nesses pensamentos tolos de o que ela deverá estar fazendo neste momento, enquanto displicentemente fica a girar o açúcar no café recém passado. Pensa que ela deve estar a espreguiçar-se languidamente sobre a cama, ou a escovar os cabelos lentamente ou quem sabe saindo do chuveiro e imagina ainda que o frio da manhã a deixa arrepiada. Sacode a cabeça energicamente como se tentasse acordar mais uma vez.

Recolhe a pasta, documentos e chaves. Para no espelho e repara nas olheiras pesadas e cada vez mais profundas sobre seus olhos. E se permite pensar que ao bater a porta ao sair, ao menos assim, estaria chegando de alguma maneira também nos pensamentos dela, nem que fosse incomodando-a na leveza da manhã que ele imagina. Cada dia bate mais forte a porta sem se perceber disto. E fecha os olhos imaginando-a franzir a testa com o barulho. E essa imagem o satisfaz. Espia uma última vez a porta do apartamento 6 e pensa em um dia bater. Só nunca consegue imaginar o que seria depois. O que diria. Nunca acha palavras, nunca encontra coragem.

Segue perdendo-se no corredor e depois pelas escadas apressadamente e seu coração bate tão forte, e prefere pensar que aquele esforço matinal de descer dois lances não está lhe fazendo muito bem, precisa fazer exames médicos, quiçá mentais! Finalmente alcança a calçada. Respira fundo e vira em direção à janela dela. E lá está. Bebericando café como todos os dias, linda visão escondida atrás daquele voal. Imagina se um dia acenará para ele, e imagina que guarda um sorriso para ele todas as manhãs. Não hoje. Quem sabe amanhã...

E termina por desaparecer.