quinta-feira, abril 06, 2006

Com açúcar e com afeto (para ler ouvindo)



Explicar, aquilo que se chama dar nome aos sentimentos, eu nunca soube. Mas hoje, sem saber como, até porque já disse que não sei explicar, eu sentia que ia ser diferente. Durante a manhã, depois da novela reprisada, fiquei olhando pela janela. Não sei quanto tempo passei olhando os passantes, mas quase perdi a hora e, imaginem só, por um nada não atraso o almoço. Você vai chegar com fome. É preciso estar tudo pronto, porque hoje vai começar a ser tudo diferente.
Colocando a mesa, vi o ponteiro pequeno avançado, e calculei o atraso. Eu conheço você, sei que está atrasado porque vai me trazer uma surpresa, afinal, hoje começa tudo novo. Nossa! Então já que vai me trazer um presente, preciso melhorar a comida. É melhor fazer aquele doce, assim você não resiste.
Enquanto faço o doce penso em tanta coisa nova que vai acontecer, o carteado com os casais amigos, as longas conversas antes de dormir, o olhar de cumplicidade quando um já sabia o que o outro ia dizer, o toque carinhoso pra ninguém ver... E quase choro quando me imagino abrindo os olhos de manhã e não sentindo a companhia insistente da solidão.
Depois disso, ainda espero o ponteiro pequeno avançar mais no espaço branco. Eu sinto fome, deve ser ansiedade diante de tanta novidade acontecendo. Você entra, eu disfarço o cochilo, e olho para as suas mãos buscando a surpresa que já espero. Por que elas estão vazias? Você, depois de um sorriso espaçoso que me faz pensar que aquele é meu melhor presente, diz que trabalhou muito, e que está sem fome. Eu vou seguindo você até o quarto, e deito na cama enquanto penso que a minha fome também passou. Fico te olhando tirar os sapatos, a roupa, enquanto fala e fala sobre a manhã grande que teve. Vai entrando no banheiro, e me pergunta, sabendo que a resposta não virá, o que me aconteceu hoje. Tanto sabe que não há nada a dizer, que já engata outra frase antes mesmo que eu pudesse lembrar que fiz aquele doce.
Eu escuto a sua voz vindo com cheiro de banho, mas sem saber o que você está dizendo, vou refazendo os planos. O olhar de cumplicidade já vai me parecendo difícil, quem sabe o carteado ainda dá... Sua voz já está bem perto de mim quando vejo que você está vestido, com aquele terno, o mais bonito. Não acredito que você já vai sair. Mas você já viu essa minha cara outras vezes, e sabe que é só falar antes de mim pra eu não ter o que dizer depois de você. Dessa vez, o velho argumento, é preciso trabalhar, por comida em casa. Sorrio sem dentes, e penso na comida toda que vai pra geladeira.
E lá vai você, a caminho do nobre ofício. Eu, já vendo a marca de meus braços na base da janela, vou olhar você indo embora. Penso que talvez ainda não seja hoje o dia do recomeço. Sei que há um bar em cada esquina, e que você tem que comemorar. Sei lá o quê.
Você entra no bar, como eu já sei, e senta na cadeira branca com marca de cerveja no encosto. Fazendo aquele gesto que em nenhum outro lugar quer dizer alguma coisa, faz com que o garçom sirva algo bem gelado. E bebe. Será que, ali, enquanto sente o gole descendo pela garganta, pensa em mim? Pensa que sou sozinha? Que trabalhei para fazer e desfazer o almoço que você não teve fome de comer? Pensa que hoje já não dá mais, quem sabe amanhã? Pensa? Não, você não pensa em nada disso, porque alguém já sentou do seu lado, e estão conversando. O gol tão bonito que o craque fez no domingo, mas também o gol que o mesmo craque perdeu, e alongam-se mais no último assunto, porque a parte ruim dá mais pra falar.
Entre o time que subiu e o time que desceu para a tal da divisão, passou aquela saia que não passou sem ser notada, e bem anotado ficou o telefone no guardanapo fino, daqueles que não limpa nada, mas que serve tão bem para anotar o que não pode passar sem ser notado. E a saia bronzeada vai embora, levando o sorriso da paquera que desconheço, mas que sinto tão lancinante que desfaço o provérbio do maldito coração que não sente quando os olhos não estão vendo.
Quando sinto as primeiras picadas dos mosquitos em meus braços, percebo que está escurecendo, é hora de sair da janela. Não sinto raiva deles, dos mosquitos, eles me rememoram que posso sentir. Um quase sorriso vem pro meu rosto, é que pensei que se eu dissesse, você diria que faço drama, não há de ser tão ruim quanto eu faço parecer. Enquanto fecho a janela, quase escuto a sua voz cantando animado. O seu novo amigo sabe como ninguém aquele velho sambinha, você aperta o peito de tanta saudade enquanto canta o refrão choroso e eu choro sem lágrima enquanto a música ecoa.
No final da música, você olha o copo, tá quase seco. O gesto pra pedir mais já não tem o mesmo ânimo, é que você está começando a cansar. A fome que você disse não sentir aparece, e o desmente apertando com força o seu estômago. A comida está gelada agora, mas eu vou estar aqui para esquentar, é o que você pensa. Eu não vou, dessa vez eu não vou.
A vida que leva não o deixa feliz, mas ainda assim é essa que você vai levando, sem nada mudar. Você vai precisar falar muito antes de mim, sabe disso. E eu vou estar cansada, mas vou ouvir tudo, para no final dizer que não dá mais pra continuar. O quê, eu não sei, mas isso não dá pra continuar. E você entra, eu penso que digo oi, mas nao digo. Sem saber por que, olho de novo para as suas mãos sem presente. Elas estão tão sujas, mas o seu sorriso é ainda melhor que o da manhã, e apesar de você não falar nada, ele me diz: Amanhã, vai ser diferente, vai ser tudo novo.
Eu não falo nada, quem sabe assim você percebe como estou magoada, mas você faz o que eu mais temia. Deita no meu colo e chora. Diz que a nossa vida vai mudar, mas diz baixinho, pra que nada ali se lembre de sua promessa amanhã caso não seja verdade, nem eu.
Você parece cansado. Passo a mão no seu cabelo sujo e penso na noite triste que tive sem você falando enquanto toma banho. Eu penso que você deve estar com fome, e pergunto se você quer que eu esquente a sua comida. Ao ouvir o sim, digo que vá tomar um banho, e fique falando alto enquanto eu esquento o seu prato.
Lá vem sua voz de novo com aquele cheiro, eu não escuto o que você diz, mas preciso que você fique ali, falando. Eu não sei explicar, já disse mais de uma vez. Eu vejo sua foto na parede, tem nela aquele sorriso que é o meu presente, a minha surpresa. Beijo a foto enquanto não te beijo, e sei que amanhã eu vou te ter na hora certa pro carteado, com aquele olhar cúmplice, já sabendo o que eu vou dizer. Eu sei que vai.









7 comentários:

Pollyana disse...

APLAUSOS DO SILÊNCIO

O meu silêncio por vezes significa uma corrente de coisas paradoxais, que poucos, os verdadeiros, entendem.
Acho que o comentário mais expressivo para o seu texto é meu silêncio a lhe reverenciar o belíssimo texto.

(...)

Beijos e saudades eternas.

Anônimo disse...

Pollyana,
primeiro agradeço a sua visita ao "café". Será sempre muito bem recebida.
Lorena,
Seu texto ficou muito bom.Torço para que não tenha sido baseado em fatos reais. Torço também para que eu não seja um personagem-tipo como o descrito!
Felicidade pra vocês do blog. Muito bom aqui, estão de parabéns!
Estão todas 3 convidadas para visitar o Café Alexandrino. Escolham uma mesa lá, sente as três, lá se pode ler, fofocar, rir, sonhar......
Fiquem com DEUS e um abração!

Anônimo disse...

Lorena, assim como o Ismael, torço para que a realidade inspiradora não seja sua, e torço também para que eu não me torne novamente esse personagem, porque o que está deliciosamente descrito no seu texto é infelizmente a realidade de muitos casais, e já foi dolorosamente a minha.

Beijos!
Erivalter

Lorena Dani disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Lorena Dani disse...

Pessoal, obrigada pelos elogios e pelo silêncio... O texto é atrevida e deliberadamente inspirado na música que o serve de título, mas não vou falar muito porque a imaginação do leitor é entidade sagrada, sendo incabível qualquer atentado que a desfaça ou ameace...

Anônimo disse...

Ainda não me habituei a freqüentar o blog dessas três meninas prodígio da escrita, no entanto, após a leitura desse texto fico com uma sensação de perda, perda de não ter lido nos dias passados textos como esse, que tocam no coração, que instigam a curiosidade das próximas linhas e que, principalmente, conseguem tornar essa realidadezinha tão miserável uma estória ( ás vezes, história, que triste) comovente.
O texto é fantástico!
Um beijo bem carinhoso, Lorena!

Anônimo disse...

CLAP CLAP CLAP!

Virei fã!