segunda-feira, abril 03, 2006

Autobiografia sem Memória


Acho que comecei a pensar no tempo quando tive que amargar o peso do conectivo “E” na minha idade... Vinte E um, vinte E dois... Para mim, bem que poderia ser menos dramático se fosse o infame conectivo aditivo substituído por um alternativo. Vinte OU três, vinte OU quatro... Só assim poderíamos gozar da imunidade de alterar comportamentos. Para os compromissos, vinte, para um denguinho e irresponsabilidades três. Pode crer que seria a solução para a paz mundial.

Já arrastando este infame conectivo, um certo dia confessei a uma amiga, a quem não ouso apontar o indicador, que desejava escrever minha autobiografia, e que o faria desde já, antes que os anos embotassem a memória, antes que o peso dos anos futuros emprestassem um falso glamour aos meus tediosos dias atuais.

A amiga, a quem o indicador insiste em apontar, recebeu a “brilhante idéia”, com uma sacudidela de ombros e um sorrisinho de deboche desacreditando a minha resignada determinação em enfrentar a audacioso projeto e ainda arrebatou com uma sentença em tom de praga, bruxaria, vodu ou sei lá o quê. O ânimo de antes resultou em um gosto de carne crua de realidade, e no consecutivo abandono na primeira e previsível linha do “eu nasci”.

Agora, a meio caminho de completar vinte E (olha ele ai novamente!) cinco anos, (o que já é a metade de cinqüenta, veja lá!), e já amargando a caquetice de achar as coisas estáticas, previsíveis ou acabadas, dei-me por retomar os planos, digamos que um tanto que ousados, de escrever uma autobiografia sem memória, e explico, desta vez menos megalomaníaca em abrangência dos mínimos segundos, afinal nunca fui muito apreciadora dos elefantes, e muito mais afeita àquelas lembranças que de tão caras, tornam-se concretas a ponto de pendurarmos na parede das sensações eternas e não perseguir os rastros de um passado embaçado e sem gosto.

Dadas as devidas justificativas preâmbulares, e antes que mais ombros indeterminados sacudam-se pelo riso do meu ingênuo intento, alerto de antemão que só o faço justamente pelo medo de esquecer as cenas que de preciosas e singelas fazem parte desse filme de espectador solitário, medroso e arfante, que hoje, antes de dormir, recordou-se de como quando era criança sua mãe soprava-me os pés por ela descalçados só para agradar-me com o frescor, e depois punha-me na cama, desdobrava o lençol recém lavado e o sacudia sobre meu corpo semi adormecido o deixando pousar suave, flutuando sobre o ar perfumado de sono. E ela o fazia sorrindo, como se aqueles fossem os atos de encantamento mágico, uma, duas, três vezes... Até aquele lençol solto no ar se tornar as portas do meu sono infantil. E hoje, estou aqui, lutando com um sono com o qual não consigo negociar, sabendo que o que me faltam são as sopradelas nos meus pés descalços, e o lençol perfumado, o sorriso, a mágica e a porta, e uma, duas, três vezes e zaz!

Amiga e ombros alheios, é assim que vou começar um dia a minha autobiografia sem memória, com esse soprinho nos pés...

2 comentários:

Lorena Dani disse...

Pôxa, Polly, você tá demais ultimamente.... queria ser um mecenas e jogar seus textos pro mundo! Saudades...

Rhafa disse...

Faço minhas as palavras de Lorena.
Este blog está pequeno para tamanha arte...