Sente falta do tempo onde tinha que colocar papel carbono na
máquina para copiar letra por letra todas as palavras. Gostava principalmente
da força que colocava nas teclas, cada batida e o som abafado das folhas.
Um tanto questionável esse seu gosto pela dificuldade da cópia, quando
todos os seus sentidos são forjados, imitados por adequação. Nunca encontrou
dentro de si o que pudesse chamar de original ou selvagem. Sente falta de
instintos.
A maior parte dos motivos são pouco lógicos, e na maioria egoístas, e
nem por isso menos legítimos. Conhece pessoas que adotam alguma razão para
justificar escolhas muito mais absurdas, e nem por isso mais ou menos
condenáveis.
Então sorteia alguma razão da urna dos motivos e a ela segura forte
entre as mãos e segue. Tergiversando no meio da festa, barulho e som alto,
adotando a melhor das performances das simpátias copiadas e sente-se beijada
pelo beijo alheio. O dele. Sempre o
dele.
“Boa noite”, beijos e cumprimentos. Corpos balançando no ritmo da
música que gira. Olhares de cumplicidade dirigidos aos olhos que o tocam no
outro canto da sala, e tocam a ela na mesma medida. Uma sintonia forjada, uma história
inventada para substituir a que não viveram, para apagar, para regar a memória
de um esquecimento, para isso e para além, coloca-se distante, e ao mesmo tempo próxima
dessa imitação. Do arremedo da constância.
É fácil distinguir aquilo que é copiado, e ela o sabe bem. A consciência
trinca seu espelho. Irritante essa imprecisão, esse vazio entre as vírgulas. Ainda mais angustiante por
não pertencer ao laço dos sorrisos, que é como um tear invisível, criando fios
um a um, tecendo um laço entre uma ponta e outra, de quem dá para quem recebe.
Retribui na mesma moeda de um gesto sem explicação, herança de um antepassado
que não traduzia em palavras o que sentia e transmutava em músculos e dentes o
que não sabia dizer. Ele é todo músculos e dentes.
Ele abraça o primeiro corpo que lhe aparece, e o mesmo ela o faz. Enreda
os dedos por entre os cabelos de uma moça embrulhada em ilusão, e ela o
repete no outro canto, com outra alma passageira e ávido por uma gota de desejo
qualquer. Assim seguem uma coreografia espelhada de gestos, prazeres e desgostos.
Suas cópias são melhores que as dele, e ela não sabe se deve se
orgulhar disso, mas de alguma forma regozija-se, qualquer um pode perceber pelo olhar furtivo que ela lança ao lado oposto da sala.
Talvez por acreditar muito mais, talvez por usar da mesma força que lembra
que empregava em cada tecla das letras da sua antiga máquina de escrever. Forjando
as melhores palavras e agora os melhores sentidos.
Mas ele ainda assim sorri
parado, atado em outros braços, naquele mesmo canto de sala, deixando a mostra
tudo o que pretende inexistente, desafiando a ordem, expondo os recantos
secretos onde esconde a existência dela dentro dele.
Por vezes se surpreende no mesmo devaneio de sempre, se perguntando se
essa sombra, esse papel copiado, será tudo que terá. Mas continua esperando
pela simples falta de ponto nas frases. Lançando migalhas aos pombos gordos na
frente do seu prédio. É o mesmo que faz com ela quando ele usa desses infinitivos.
Ela é a cópia, o espelho. É a cria do desejo, é o beijo que nunca foi
dado. Marca indelével da própria criação.
E assim estão unidos, o original forjado e a cópia da invenção. Os dois
são fantoches, imitadores do amor alheio, esse será sempre o papel que terão um
em frente ao outro. Fazendo da vida uma folha de carbono, copiando atos e
sentimentos, tornando da vida própria a alheia, escolhendo lados, mas sempre
inversos e ausentes.
Tarde ao som de: Someone Like You - Adele/ Take it All - Adele
5 comentários:
Os comentários estão magros... está parecendo produto feio em prateleira: Todo mundo olha mais ninguém leva! rssss
Nossa senhora. Que texto é esse?
Amei!
'A maior parte dos motivos são pouco lógicos, e na maioria egoístas, e nem por isso menos legítimos. Conhece pessoas que adotam alguma razão para justificar escolhas muito mais absurdas, e nem por isso mais ou menos condenáveis. '
Ahhh, ter que provar que não é um robô ao postar um comentário é muito chato ^^
Belíssimo texto. A polissemia do seu enredo nos envolve de uma forma que enseja uma reflexão curial se o que eu estou compreendendo representa - realmente - o intento de significados que você pretendeu explicitar. Parabéns. Você acabar de adquirir um leitor assíduo.
Muito bom, amiga !
Fico muito honrado de conhecer uma contista que está entre as primeiras do cenário nacional.
Pensei que isso nunca aconteceria em minha vida.
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