terça-feira, agosto 22, 2006

Velas


No primeiro toque do telefone ainda navegava. Os cabelos dela eram as velas, e imaginava mar, sol, nuvens e tudo que pode compor um quadro perfeito. No segundo toque o navio começou a ir a pique tudo triste como os naufrágios e os dias de terça feira tem de ser.

Foi só então que se viu sentado na sua cadeira azul de sempre, na sua sala hermética e branca, em frente a sua mesa, cercado de caos produtivo por todos os lados. Uma ilha. Desejou o seu navio afundado, desejou asas e uma janela.

Mergulhos... Visto de fora, sorria seu melhor sorriso comercial, respondia com todos os ‘erres e esses’ das respostas genéricas. A mesa dela ao lado da sua. Proximidade torturante das possibilidades irreais. Imaginava-se levantando da cadeira, lhe tomando pela mão, arrebatando-lhe com um beijo ao meio-dia. Ou o inverso, que era o que mais gostava, quando ela empurrava todos os papéis da mesa e lhe puxava pela gravata... Por vezes surpreendia-se ensaiando o momento que pularia de sua cadeira na dela, lhe diria que odeia sua impessoalidade cordial, e logo depois lhe beijaria os pés e todos os seus dedos...

Entende as essencialidades. E nem se esforçou em notar o quando ela lhe amarrou com cordas o pensamento. Por ele, lhe lamberia o corpo inteiro com poesia e lhe embriagaria de imagens. Nem labirintos nem desertos, nem sujeitos nem objetos. “Só sua língua na língua minha, só sua língua na língua minha...”. Porque amava suas inverdades e as verdades que inventava só para ele.

Por ela se fez visível e correu todos os riscos, se fez vulnerável e ingênuo porque assim a fazia acreditar que, por ele, ela podia fazer algo. Fez-se de sofrido, vivido e forte, compartilhando dores, ciência, pintura, fotografia, literatura e novela das seis.

Certeza inabalável de necessidade mútua enquanto ela lhe passava pilhas de pastas para análise, certeza que de tão feridos nunca ousariam ferir. Flechas sem pontas esses olhares. Nunca encara seus olhos fundos. Carregam muito mais do que pode ler. Marido, filhos que quer por um segundo esquecer. Iletrado e analfabeto, é assim que se sente diante dela. Porque só pensa nesse latejar que sua pele provoca ao se aproximar.

Ela sorria mesmo impaciente. Deu três batidas firmes seguidas nas teclas do seu teclado. Depois mordeu a pontinha da tampa de sua caneta preta. Sinal claro e evidente. Ela também sente esses laços que lhes atam. Entrevê o suave movimento de seus seios sobre a blusa enquanto respira.

Ele acha que em algum lugar da sua memória pode encontrar fé. Acha que teve amor e que não sabe bem porque ele secou, esqueceu ou se perdeu. Abram-se as portas. Tem certeza que vai encontrar na curva fechada dos dedos dela enquanto segura o queixo com a mão, pensando efemeridades e lhe sorrindo enquanto guia sua nau de volta ao mar antes do telefone tocar outra vez.

4 comentários:

Pollyana disse...

Nada de muito novo para publicar... Mas para espantar as teias de aranha...

Desculpas preventivas meu amigo (caso leia, é mais seu do que meu, mas vc sabe, personagens são de todos, não concorda?)

E meninas, saudade de vcs...

Lorena Dani disse...

Polly, vc está se tornado insuperável até para vc mesma... lindo e muito sensível, como é de seu bom gosto! Saudades, amiga!

Anônimo disse...

Olá, Pollyana. Tudo bem? Espero que sim. Também espero que tenha recebido minha resposta ao seu comentário no meu blog. Por ora, estou passando apenas para informar, caso não já saiba, que aquele depoimento em Páginas da Vida (daquela mulher...do orgasmo aos 45 anos, lembra?) deu o que falar. Ela perdeu o emprego. Era doméstica. Mas já há um advogado cuidando do caso. Li a matéria em um site daqui de Alagoas (www.alagoas24horas.com.br).

É isso.

Um abraço. Até mais.

Yuri.

Anônimo disse...

Olááá, Pollyana. Posso enviar para você de novo sim. Mas seria melhor pro seu e-mail, pois, pelo blog, tem de ficar publicado lá. Quanto à "carinha desconsolada...", faz parte da vida. Mas nada que não seja absolutamente superável. Depois que ler este comentário, se quiser, pode apagá-lo, já que não se refere ao seu texto.

Meu e-mail: yurimbrandaoarroubauolpontocompontobr

Obs.:
Escrevi por extenso por medida de maior segurança contra programação de vírus. Sempre há os engraçadinhos, né?

Abraço, querida.

Yuri.