Because "Life is Just a Dream".
O vento assobiava um lamuriado triste pelas frestas
das janelas, como se fosse a voz da solidão dela. Seu vestido parecia dançar
com vida própria ao cobrir aquele corpo esquálido. Já não era nem sequer a
sombra da mulher que florescia menos de três meses antes. Teve como dieta a
espera. Mastigou incessantemente apenas uma saudade amarga, como se fossem
folhas de coca, como se faz antes de subir um grande penhasco. Mas ao contrário do que se
espera ao superar desafios, como os de uma escalada, no topo, encontrava o
mais absoluto nada!
Contrariando suas reais vontades, sua inata
insistência era nutrida por um senso de sobrevivência primitivo. Seus músculos
tinham até decorado algumas respostas automáticas diárias. Um sorriso na
esquina, um bom dia inaudível ao porteiro, os apertos de mãos no
trabalho. Tudo sinistramente ordeiro para alguém que guarda o caos nos
pensamentos.
A noite, antes ansiada com se fosse o prato principal de
um guloso, agora se tornava o ofício obrigatório de uma tortura biológica: sabe
que novamente terá de deitar-se e fechar os olhos para encontrar só o espaço
vazio de sonhos comuns. Se houvesse vasos para serem atirados nas paredes e no
chão dos sonhos, ela o faria para dissipar a milésima parte da ausência que lhe
habita desde o dia em que ele não mais abriu a porta, depois que ela cerrava as
pálpebras... Não cansava de soletrar a palavra injustiça como se fossem as coordenadas
de um mapa obscuro.
Infelizmente, não havia mapas, nem nomes, nem
endereços que apontassem a direção. Não havia portas, nem saídas ou quiçá um
caminho de tijolos amarelos para seguir. A presença era uma lembrança inexata e
insana. Apenas isso! Na verdade tudo isso!
Até parece injusto creditar-lhe as sensações mais
intensas que já viveu, como algo perdido na fumaça do inconsciente. Por mais que
tente atualmente se convencer de que "foi apenas um sonho", ainda sente a
pele arrepiar quando escuta vividamente a voz dele sussurrada em seu ouvido, e censura-se,
ruborizada, quando surpreendida pelo Prazer, esgueirando-se fugitivo de suas
memórias...
Apaga o abajur e olha triste para gaveta da cômoda.
Preferiria, talvez, que ele fosse renegado ao lugar destinado aos outros que
já permearam sua vida: colecionando-o como fotografia desbotada dentro de uma caixa florida de
papel.
Deixa-se finalmente cair sobre a cama, atada ao fio
de esperança de ainda encontrá-lo naquela mesma sala. Consegue até sentir a sensação do tecido áspero daquele sofá, sempre nebulosamente perdido no ambiente dos sonhos, mas não reencontrar as sensações de tê-lo a um passo de si.
O vento aquieta suas lamúrias uivantes como se
respeitasse o silêncio que a dor impunha no último segundo antes que ela
embarcasse em um sono vazio e se desfizessem os últimos vestígios dele.
***
*** *** ***
Fechou a última pasta com exagerado estardalhaço para
autoproclamar a missão concluída. Encarava a rapidez no término diário das
atividades quase como uma competição com os ponteiros do relógio sobre a
bancada. Desta vez 10 minutos mais cedo que ontem.
Apressou-se em catar seus objetos espalhados pela
mesa e sair tilintando as chaves do carro. Pensou até em assobiar uma canção
qualquer, mas a que lhe veio em mente pareceu demasiadamente triste para o
momento... Quase um uivo queixoso. Tratou de esquecer o assovio e deixou-se
tomar pela excitação da partida do motor do carro e seu ronco controlado. Não precisava de mapas tão pouco de GPS para
dobrar nas esquinas certas e guiar suavemente ruas e avenidas. Esperava
tranquilo o semáforo abrir enquanto tamborilava os dedos no volante imaginando um
determinado vestido, quem sabe ela o vestisse hoje.
Não sabe bem o motivo, mas o decote aberto em suas
costas fazia certamente que ela brilhasse. Foi exatamente ele, este insinuante
rasgo em forma de “V” que o agarrou pelos olhos quando a conheceu no pub da Passeig de Gràcia, ligeiramente debruçada sobre o balcão, distraidamente olhando garrafas
de um vinho ano 64. Entrou no lugar arrastado por aquele decote invertido.
Mergulhou em uma conversa menor pela simples (in) conveniência social que não
lhe permitiria colocar as mãos por dentro do vestido de uma mulher que acabou
de conhecer. E orgulhosamente se pensa sortudo por haver conquistado a mulher,
de a haver levado para sua cama e aberto lentamente o vestido vermelho com
decote profundo nas costas, como se saboreando aquele mesmo vinho exótico que
ela observava quando a viu.
Ao parar o carro foi dominado pelo pensamento
intruso da dúvida. Questionou se não deveria religar o motor e partir,
trancafiar-se em seu quarto e apenas dar uma desculpa qualquer por não a
encontrar essa noite. Racionalmente afugenta esse pensamento quase que as
vassouradas. Reprograma sua animação e abre a porta com as chaves recém-presenteadas.
Infelizmente ela não está vestida com aquele
vestido. Tão pouco usa meias marcando-a nas coxas. Mas convence-se que pouco
importa, pois recebe o beijo mais terno que jamais poderia pedir.
Ela arruma a mesa com um jantar que preparou
especialmente para ele. Três meses de relacionamento. Três meses nos quais ele
finalmente alegrava-se em viver seus dias sem ser atormentado por suas noites.
Dormir ao seu lado era um bálsamo. Muito mais potente do que os remédios que
chegou a testar para reconquistar o ânimo de ver o fim de cada dia.
Mas existia algo de indecifrável. Talvez seus
modos, ou quem sabe fossem seus movimentos... Mas algo era quebrado por definição.
Incompleto. Ele simplesmente não saberia identificar em qual ponto exato. Não
que não fosse graciosa... Ao contrário! Poderia elencar sutilezas que faria
qualquer homem render-se aos pés dela, e muitos já o haviam feito, mas algo não
estava certo. Como se fosse um relógio que sempre atrasasse seus ponteiros. Talvez
fosse exigente demais. Deve ser isso. Apenas isso.
Ela derrama-se em carícias, enquanto ele apenas
dedica-lhe algumas contidas retribuições, talvez por ver-se mentalmente perdido
ainda a procurar o lugar exato onde os ponteiros dela entram em descompasso. Não ouvia nenhuma música quando tocava sua
pele, apenas tinha um irremediável desejo de lhe morder os lábios e provar se o
gosto dela também era doce, mas nunca o fez.
Não costumava admitir que buscava o sonho na
realidade. Nem que a falha da perfeição era justamente a ausência da nebulosa silhueta
da mulher que sequer conhece. Tão pouco reconhecia que ainda dormia ansioso, e
que seu último pensamento antes de fechar os olhos era ela.
Imagem: Woman with a glass of wone - Elena Ilku
Link:http://www.whiterockgallery.com/ilku-glassofwine.htm
Ao som de Asa - The way I feel
Link: https://www.youtube.com/watch?v=aHJMa0y3W4k
Imagem: Woman with a glass of wone - Elena Ilku
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Ao som de Asa - The way I feel
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