Esse texto já estava "rondando" minha cabeça há muito tempo, fico feliz de hoje ele finalmente ter parado de me "assombrar" e aparecido por completo!
Escutava o barulho do ponteiro
raspando com dificuldade entre a passagem de um minuto para o outro. O barulho
oco dentro do apartamento ainda parecia muito mais razoável do que o ronco do
seu estômago reclamando atenção, já que tinha negligenciado à hora do seu café
matinal apenas para ouvir o tilintar da xícara, e o girar lento da colher
dissolvendo o açúcar.
Adivinha um meio sorriso de satisfação que seria seguido
de um olhar pela janela avaliando o tempo, e hoje estava nublado, certamente
ele levaria consigo o guarda-chuvas, pensou. Logo depois ele olharia no espelho
e passaria os dedos pelos cabelos pegando as chaves ruidosamente, neste exato
momento, e por fim abre a porta que reclama o abandono de seu dono rangendo, e
a fecha com uma força desnecessária, para depois sair vagarosamente pelo
corredor, montado nos mesmos passos firmes de todos os dias. Fim do primeiro
ato. Respira fundo.
Só agora atende ao apelo convulso
do seu estômago e serve seu café morno, e vai bebê-lo próximo da janela, oculta
pelo voal branco, comodamente fechado, enquanto assiste ele distanciando-se na
rua, e já espera seu último olhar para cima, como se tivesse acabado de lembrar
que se esqueceu de algo no apartamento e que restará esquecido, quem sabe
lembrará amanhã. Fim do segundo ato.
Essa é sua dança, uma coreografia
que já pintou tantas vezes na sua cabeça que por vezes se pega imitando os
gestos que imagina dele, e girando a chave no mesmo momento que ele o faz, mas
jamais ousaria abrir a porta.
Acredita no absurdo, que já usam
uma comunicação sem palavras. Sua porta e a porta dele, bem em frente da sua,
que se fitam sem remédio e sem desculpas, pela pura falta de sorte de não
poderem fugir desse destino de assim estarem. Abre, bate, fecha, trava.
Seguido. Sempre na mesma ordem. Não confia nas fechaduras, mas nesse ritmo que
segue para fazer essa seqüência de ações que sua mente classificou como
essenciais. É quase uma música. Uma orquestra inteira quiçá. Imagina-se igualmente
dançando. Treinando sem cessar rodopios seguidos. Sente-se leve com este
pensamento e até sorri.
Imagina que lamentável destino
que tem a sua porta branca, que agora finalmente é aberta para que a sua dona a
abandone para suas obrigações do dia. Repara no número que precisa de conserto.
Um 6 meio torto que parece tão triste e solitário quanto ela. É sua vez de
olhar uma última vez, mas para a porta dele de cor escura, com aquele 9
altivamente irritando-a por ser guardião intransponível de tudo que ela mais
deseja.
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Espera o despertador tocar, mas já
está acordado a tanto tempo que tenta recordar se chegou a dormir algum minuto
daquela noite. Mas sente-se aliviado de finalmente não estar atado ao
compromisso de sonhos rebeldes, nos quais se vê em uma repetição sem fim dos
mesmos gestos.
Entra no chuveiro com todos os
vestígios desses pensamentos e espera que a água o redima para o resto do dia. Prefere-a
gelada e imagina-se um faquir por sentir como se milhares de espadas o
transpassassem o corpo inteiro. É a dor que o devolve para a sensação de algo
que ele costuma chamar de realidade.
Desenvolveu o hábito de revisar
mentalmente a agenda do dia enquanto está no banho. Já há algum tempo sente-se
tão ansioso por esse início de manhã, sem saber exatamente por que, que já se
percebeu velejando por imagens e lembranças que em nada se relacionam com seus
relatórios e prazos. Dia desses quase aceitou o conselho de um amigo que
receitou alguns patoás feitos por um ubandista no Flamengo. Crê-se assombrado. Mas
não consegue evitar a lembrança da imagem dela diante dele. Os cabelos loiros
soltos e caídos sobre os ombros.
E perde-se nesses pensamentos
tolos de o que ela deverá estar fazendo neste momento, enquanto
displicentemente fica a girar o açúcar no café recém passado. Pensa que ela
deve estar a espreguiçar-se languidamente sobre a cama, ou a escovar os cabelos
lentamente ou quem sabe saindo do chuveiro e imagina ainda que o frio da manhã
a deixa arrepiada. Sacode a cabeça energicamente como se tentasse acordar mais
uma vez.
Recolhe a pasta, documentos e
chaves. Para no espelho e repara nas olheiras pesadas e cada vez mais profundas
sobre seus olhos. E se permite pensar que ao bater a porta ao sair, ao menos
assim, estaria chegando de alguma maneira também nos pensamentos dela, nem que
fosse incomodando-a na leveza da manhã que ele imagina. Cada dia bate mais
forte a porta sem se perceber disto. E fecha os olhos imaginando-a franzir a
testa com o barulho. E essa imagem o satisfaz. Espia uma última vez a porta do
apartamento 6 e pensa em um dia bater. Só nunca consegue imaginar o que seria
depois. O que diria. Nunca acha palavras, nunca encontra coragem.
Segue perdendo-se no corredor e
depois pelas escadas apressadamente e seu coração bate tão forte, e prefere
pensar que aquele esforço matinal de descer dois lances não está lhe fazendo
muito bem, precisa fazer exames médicos, quiçá mentais! Finalmente alcança a
calçada. Respira fundo e vira em direção à janela dela. E lá está. Bebericando
café como todos os dias, linda visão escondida atrás daquele voal. Imagina se
um dia acenará para ele, e imagina que guarda um sorriso para ele todas as manhãs.
Não hoje. Quem sabe amanhã...
E termina por desaparecer.