Disse-lhe que iria embora. Palavras que ele não poderia fazê-la engolir... Um “ir” que não poderia mais voltar... Irônico para não dizer trágico, foi o que pensou enquanto catava um restinho de voz no fundo da garganta para lhe dizer que estava muito feliz, que acreditava que isso era o melhor para ela. De fato talvez fosse se ele não estivesse perdendo com aquele “ir” todo o sentido de ser, estar e ficar.
Ainda segurava o telefone colado ao ouvido, mas cada palavra dela parecia-lhe se afastar mais uma quilômetro de distância... Uma voz rouca arranhava em um blues doído ao fundo enquanto ela dizia-lhe ao telefone que tinha algo para dar antes que fosse... Don’t you know that I need you... Don’t you know that I need you... Ainda girava o blues e a dor... Algo especial e que antes de lhe dar teria que ensiná-lo a usar... Algo que o manteria “muito, muito próximo” dela. Ele queria acreditar e queria pedir-lhe para largar aquela faca com a qual cortava sua pele, tão fina, ela não lembra? Queria parar de sentir que sem aviso roubaram-lhe a gravidade.
Se ao menos sentisse que ela sofria, mas nem condoída nem pensativa, muito mais próxima do eufórico do que ele das lambidas das chamas do inferno... No máximo conseguiu embebedar-se de mais auto-piedade. Imaginava amores novos, abraços novos, risos que não seriam dedicados a ele. Mais um pouco de chama. Foi ai que as cordas ela desatou. Foi bem nesse instante que viu crescer uma gigantesca parede de vidro entre os dois.
Disse-lhe que iria vê-la quanto antes! Disse-lhe mais outro tanto de inverdades agradáveis. Desligou. Agarrou-se a garrafa de vinho que ela lhe trouxe daquela viagem ao Chile. “Para beber em ocasiões especiais”. Dormiu sentindo a ilusão dos ébrios. Vinho adoçado com esperanças irreais. Os bons vinhos do Chile...
Às seis da tarde estava na frente do seu prédio. Às seis e dez dentro do elevador. Às seis horas, dez minutos e trinta e cinco segundos ela lhe abriu a porta sorrindo, lhe abraçando o corpo forte com seus braços frágeis e colando aquele corpo miúdo ao dele. Tinha pedido emprestado um sorriso de uns cartazes de anúncio na rua e colado em seu rosto. E isso a fazia tão bem, “não é meu bem?”.
Muitas caixas pelos cantos. Quadros fora da parede. Onde estão suas fotos e aquele sorriso torto ao seu lado no carnaval de 87? Um desalinho de fuga premeditada. Comentários rasos, infames, contraditórios, desnecessários e sem critério. Especialidade da casa. Era a única coisa que ele tinha a oferecer, pois estava oco. Completamente... Enquanto ela lhe cobria de detalhes da nova cidade e gesticulava alto quando falava desse bicho estranho de quatro patas, presas enormes e fome insaciável. Aquele bafo quente no pescoço. Futuro.
As palavras lhe vinham à boca como uma ânsia de vômito. Mas respira e tenta agir banalmente enquanto mergulha em um poço profundo de elucubrações. Finalmente ela lhe agarra a mão fazendo mil promessas de que nunca vai deixar de sentir saudades, e pedindo infantilmente que ele vá visitá-la nas próximas férias. Talvez mal saiba ela que as promessas são o primeiro passo para o esquecimento...
Sem soltar a mão que agora lhe encosta o peito leva-o até a varanda. Diz-lhe que não teve tempo de por um grande laço vermelho na sua luneta, mas que ele poderia imaginá-lo. Seu presente. Ela queria lhe dar estrelas.
Enquanto ela olha para o céu, debruçada sobre aquele “olho de vidro”, ele segue as linhas do piso com a ponta dos pés e o olhar perdido no chão. Tenta achar tantos porquês quantas são as toneladas do peso que arrasta desde que ela lhe disse esse “ir” infame... Porque nunca lhe disse que tanto desejava sua boca vermelha? E porque nunca lhe tocou os cabelos caídos sobre os ombros, porque nunca a pôs no colo e lhe olhou dentro dos olhos? Talvez tenha imaginado que teriam tempo infinito para saborear cada pedaço daquela eterna queda de braços... “Vamos brincar de gato-e-gato meu bem, vamos?” Mas entre eles não há como medir forças. Da igualdade só se retira derrota mútua... Ela cansou? Quem sabe ...
E como se montasse um enorme quebra-cabeça pensa no encontro. Pensa nesses “se” escondidos na esquina. Ela lhe fala das constelações e ele só pensa em seu próprio umbigo, na sua dor. Ela lhe conta a história mitológica de Órion e sorri apontando as Três Marias. Cão maior, cão menor e uma nebulosa. Pede-lhe que teste o equipamento, afinal agora aquela luneta é dele. Posiciona-o e lhe fecha o olho direito com o indicador rindo do seu mau jeito... E por aquela lente vê o que seria uma vida paralela ao lado dela, imagina até flores que logo murcham porque sabe que no máximo tiraria dela meia dúzia de boas risadas, um caminhão de tesão, e várias toneladas de desprezo raivoso no final. Não era o que queria. Abriu os olhos e cedeu de volta o espaço que a ela pertence...
Forças iguais devem se equilibrar... E o equilíbrio é seu sorriso pleno... Disso ele sabia. Ao mesmo tempo em que igualmente tinha consciência de que aquele sorriso dela era seu descompasso... Nem feliz nem triste. Nem presente nem ausente. Não sabia o que lhe doía mais...
“Buracos negros convivem?” Perguntou-lhe de surpresa. E ela ria divertida pelas curiosidades infantis enquanto explicava sobre a força gravitacional e velocidade da luz. Por mais que ele soubesse que ela não é estrela. Tão pouco ele. “Somos buracos negros meu bem, somos buracos negros!”.
A simplicidade é a meta, tal qual uma poesia perfeita, ela lhe explicava. Redonda e vazia, era o que pensava... Talvez por isso que ela nunca conseguiu enfiar ele em versos. Juntar seus pedaços como se costurasse grãos de areia com agulha e linha.
Ela pede uma estrela daquelas muitas apontando com o dedo e diz que é dela. Ela pede um até logo e ele só tem a lhe dar um monte de acenos teatrais típicos das partidas. Saiu daquela porta carregando, ela, uma estrela, uma luneta e um adeus.
P.:S.: Para ser lido ao som de Água - Jarabe de Palo